sábado, 3 de janeiro de 2009

Eu sei, mas não devia...

Eu sei, mas não devia...

Eu sei, mas não devia...
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não deveria
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o Sol, esquece o Ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A dormir cedo e pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos.
E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de Paz.
Aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que necessita.
A lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a ganhar menos do que precisa. E a fazer filas para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem. E, a saber, que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e a ver cartazes.
A abrir as revistas e a ver anúncios. A ligar a televisão e a ver comerciais.
A ir no cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição.
As salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
A luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
A contaminação da água do mar, a lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir o passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães.
A não colher fruta do pé, a não ter se quer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai se afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma a não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma a poupar a vida que aos poucos se gasta e que de tanto se acostumar, se perde de si mesma. Eu sei, mas não deveria... te mandar essa mensagem porque você está tão sem tempo, mas é que a gente se acostuma a não ter tempo pra mais nada, e assim esquece de dar um oi para os amigos, de dizer ‘eu te amo’, de beijar e abraçar quem nós gostamos...
Eu sei, eu deveria não me acostumar mais... por isso lembrei de você, e gastei um pouquinho do meu tempo pra dizer que pensei em você, pra não me acostumar mais com esse vazio da Vida...

Nenhum comentário:

Postar um comentário